SalveBeauvoir!
"Querer-se livre é também querer livres os outros."
Beauvoir
Se ainda hoje estivesse entre nós, teria completado 105 anos. Algumas
pessoas veem ao mundo, em minha concepção, com uma missão específica.
Definitivamente Simone Lucie-Ernestine - Marie Bertrand de Beauvoir ou
simplesmente Simone de Beauvoir cumpriu a sua, inspirando várias gerações
posteriores com seus escritos produzidos magistralmente. Essa filósofa
brilhante, capricorniana do dia 9 de janeiro, livre, admirável, lúcida, ética,
enfim Beauvoir direciona os pensamentos e concepções de muitos ainda hoje.
Em um dos seus momentos de epifania, de iluminação escreveu: “Não se
nasce mulher, torna-se mulher”, frase acertadíssima proferida por essa mulher
incrível na obra “O segundo sexo”, em 1949. Foi apontada e acusada de
ridicularizar os homens, quando na verdade, queria apenas evidenciar que ser
outro não é ser menor ou de segunda classe, mas é ser capaz de enfrentar os
estigmas da cultura com uma mentalidade distinta, com um discurso diferente,
Beauvoir assinalou tanto a opressão que pesa sobre as mulheres, quanto as suas
dificuldades em se romper com os laços que nos prendiam e ainda nos prendem a
tal servidão.
Vale lembrar que nossa sociedade ainda segue muitos padrões de configurações
sociais do passado, padrões indicados como normas no comportamento feminino e
masculino, representações e performances de gênero específicas: "homem não
chora" "mulher é emotiva, e naturalmente sensível",
"mulheres são frágeis e homens são fortes e habilidosos", “Toda
mulher quer ser mãe”, generalizando características tão subjetivas quanto o
fato de eu gostar de amarelo e meu amigo de verde.
Ora, Beauvoir já havia dito não se nasce mulher, torna-se mulher,
acredito que nós, mulheres “estamos no caminho certo para a construção da
cidadania feminina e também para que o nosso país não tenha a figura da mulher
como a cara da pobreza, da desigualdade, da discriminação, da inferioridade, e
sim como a cara da democracia, da cidadania e da construção de uma nova
proposta de sociedade. Entretanto, ainda me deparo com situações
inacreditáveis, mesmo em meio a todos os avanços e esclarecimentos, como por
exemplo, uma pesquisa realizada na escola de serviço social da UFRJ, a qual
teve resultado de pesquisa publicado no jornal da referida universidade, datado
de abril do ano de 2010, cujo título da publicação era: "Preconceito
Mascarado". Tal notícia nos leva a entender que embora tenhamos
conquistado muito em comparação ao que tínhamos, nossa sociedade ainda
discrimina as mulheres, e a situação piora quando falamos nas mulheres negras.
Nesta pesquisa realizada em empresas que atuam no nosso país constatamos que a
suposta meritocracia tem encobrido políticas discriminatórias. No topo da
pirâmide hierárquica nas organizações brasileiras, como diz a matéria, ainda
encontramos praticamente apenas homens, heterossexuais e brancos. Cabe aqui uma
citação da aniversariante: “É pelo trabalho que a mulher vem diminuindo a
distância que a separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma
independência concreta."
Por outro lado, acredito que as coisas estão mudando, uma mulher na
presidência do país pela primeira vez na história, uma chanceler na Alemanha,
outra presidenta na Argentina, Secretária de Estado norte-americana, enfim
acredito que nós mulheres estamos mostrando do que somos capazes, como somos
competentes e fortes, mas ainda existem muitos preconceitos. Neste sentido,
Beauvoir entendia que a mulher assumiu, ao longo dos tempos, o lugar do outro,
da pura alteridade com valoração negativa, cuja identidade é determinada pelo
homem. Também entendia que a dimensão humana é sempre paradoxal. A obra de
Beauvoir é pura inspiração, basilar e necessária para que possamos “desvendar”
a maneira pela qual as mulheres são “criadas” exatamente para serem
menos/inferiores aos homens. No decorrer do seu trabalho, recebeu críticas de
conservadores e moralistas, que chegaram a chamar “O segundo sexo” de “manual
de egoísmo erótico”, “recheado de “ousadias pornográficas”, Jean Kanapa
afirmou: “Mas sim, pornografia. “Não a boa e saudável sacanagem, nem o erotismo
picante e ligeiro, mas a baixa descrição licenciosa, a obscenidade que revolta
o coração.” Claude Delmas lamentou: “a publicação por Simone de Beauvoir dessa
enjoativa apologia da inversão sexual e do aborto.” Pierre de Boisdeffre em
Liberté de l’ésprit assinalou “o sucesso de O Segundo Sexo junto aos invertidos
e excitados de todo tipo.”.
Como puderam esses críticos proferir essas palavras? Cito aqui a própria
Beauvoir em sua defesa:
“Todo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência
sente-a como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de
maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma
liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe
impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência,
porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra
consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a
reivindicação fundamental de todo sujeito, que se põe sempre como o essencial,
e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial. Como pode
realizar-se um ser humano dentro da condição feminina?”(BEAUVOIR, DS I, 1980, p. 23).
Isso é pornografia? Ora, era isso que Beauvoir defendia em “O segundo
sexo” Vol. 1 ou será que eles não entenderam Beauvoir? Ou não lhes era
interessante na época compreendê-la. As concepções de mundo, convicções,
identidades, acompanham as sociedades no que concerne a compreensão de que
ambas estão em processo constante de mudança e adequação, as instituições
sociais responsáveis pela formação dos indivíduos produziram ou ajudaram a
produzir alguns discursos depreciativos, ofensivos, preconceituosos etc., é
importante destacarmos que mulheres como Beauvoir são responsáveis por algumas
liberdades e conquistas das quais usufruímos hoje,
Infelizmente, muitos anos após a morte de Beauvoir em 1986, ainda “fala-se”
sobre o respeito às “diferenças”, a diversidade e o direito de todos à
cidadania, o que aparenta, de fato, que qualquer um pode apossar-se desse
discurso, que é aprazível, humanitário etc., e muito fácil de casar com o
discurso neoliberal da atual sociedade, na qual há um mercado para tudo, e,
portanto, um espaço “para todos”, contudo a realidade é bem diferente, Beauvoir
contribuiu como muitas outras e outros para nossa compreensão sobre as relações
de poder que estão na base da dialética da exclusão, para que hoje possamos
continuar com a luta pelo respeito e pela igualdade entre os gêneros, ela
afirmou que “as oportunidades do indivíduo não as definiremos em termos de
felicidade, mas em termos de liberdade”, e foi pelo que lutou.
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