Agência Rio de Notícias

terça-feira, 26 de agosto de 2008

"Tudo o que penso vem da sociedade"


Fonte: JB On Line - 20/08/2008


Alexandre Werneck



Em 1976, o candidato Ariano Vilar Suassuna se apresentava diante de uma banca na Universidade Federal de Pernambuco. Sobre a mesa, o texto A onça castanha e a Ilha Brasil – Uma reflexão sobre a cultura brasileira. Apesar do título, não era mais uma peça do autor de Auto da Compadecida. Era sua tese de doutorado. O escritor paraibano, que trouxera ao mundo não apenas a saga de João Grilo e Chicó (1957) como também O romance da Pedra do Reino (1976), pleiteava uma vaga para dar aula na UFPE e, ali, defendia aquele que ele próprio define como seu "único trabalho mais sistemático para uma teoria sobre a cultura brasileira". Modéstia. Neste momento, aquele texto, uma preciosidade, está finalmente sendo revisto por Suassuna, para ser publicado em livro em breve. É fácil olhar para toda a produção do autor e ter a impressão de que o subtítulo de sua tese poderia subscrever qualquer um de seus trabalhos. Vejamos, por exemplo, o Almanaque armorial, que tem lançamento (da mesma José Olympio que publica sua obra literária) hoje, às 20h, com presença do autor, na Livraria da Travessa do Centro Cultural Banco do Brasil.



Trata-se de uma coleção de artigos, ensaios, discursos e outras intervenções do criador do movimento que cede o nome ao Almanaque e que tinha como fim criar uma arte erudita legitimamente brasileira inspirada na cultura popular do país. Em 25 textos, publicados em jornais, livros, revistas ou simplesmente apresentados oralmente, entre 1961 e 2000, salta aos olhos não apenas seu interesse em pensar a literatura do Brasil e do mundo – como fica claro em textos como Dostoiévski e o mal – mas sobretudo um olhar digno de uma teoria... sociológica.
– Tudo o que penso vem da literatura, mas vem principalmente da sociedade – diz Suassuna, de 81 anos. – A sociedade sempre foi a fonte para fazer uma literatura que não imite a Europa ou a América do Norte. Não por xenofobia, mas porque quero fazer uma literatura diferente. O ser humano é o mesmo em qualquer parte, mas o importante é ser o mesmo com uma ótica local.


Críticas a Gilberto Freyre


A voz foi quase perdida em mais uma das aulas-espetáculo que se tornaram seu sacerdócio nos últimos anos – o que se repete no Rio amanhã, às 18h, no evento Embaixada de Pernambuco, no Solar de Santa, em Santa Teresa, Zona Sul do Rio.
Um dos textos mais impressionantes da compilação, feita pelo pesquisador pernambucano Carlos Newton Júnior com a idéia de juntar num mesmo volume textos inspirados no movimento criado por Suassuna em 1970, é Teatro, região e tradição, de 1962, feito para o livrinho Gilberto Freyre: Sua ciência, sua filosofia, sua arte, comemorativo aos na época 25 anos de publicação da obra máxima de Freyre, Casa grande & senzala. No texto, Suassuna critica severamente uma certa corrente das ciências sociais brasileiras, que simplesmente repetiriam o pensamento de Freyre sem reconhecer em seu interior as variações que o próprio autor se permitia.

Mas o centro do texto é mesmo uma crítica ao pensamento freyreano, uma análise do Brasil a partir da miscigenação e do espelhamento entre a morada dos senhores e a dos escravos.
Por isso mesmo, impressiona ver um autor teatral e romancista tomar uma posição tão determinada contra uma visão teórica. Dos artigos do Almanaque o salto no tempo para a antiga tese junta as pontas da mesma tomada de posição sobre a corrente que analisa o país como um democracia racial calcada no igualamento entre as raças, quando ele aposta numa diplomacia racial centrada justamente na diferença. Se, no primeiro, o debate surge em vários textos, como o analítico Canudos, nós e o mundo ou o Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (1991), no segundo, que Suassuna promete colocar de volta no papel assim que seu aguardado novo romance estiver pronto (o que está juramentado para este ano), a análise é bem mais minuciosa e atravessa tradições literárias e culturais de várias esferas do pensamento brasileiro.
Talvez, então, o principal resultado da revisão da tese – que começou já logo depois da banca – foi a mudança do título.

A onça, que era castanha, virou malhada. A imagem do animal de tom pardo era inspirada na leitura à Euclides da Cunha de um Brasil forte porque miscigenado, mulato. Para ele, era mais importante deixar claro que o brasileiro traz em si partes do negro e partes do branco (malhado, portanto), e não uma mistura criadora de uma terceira etnia. A malhalidade de Suassuna é uma crítica sociológica:
– A morenidade de Gilberto Freyre, de Manuel Oliveira Lima e de Silvio Romero (duas fortes influências de Freyre) é racista. Se sugere o enegrecimento do branco, ao mesmo tempo exige o clareamento racista do negro. E o que há de mais bonito no Brasil é a convivência de elementos dessas duas cores.
Se se posiciona, entretanto, tão claramente em termos teóricos, ele concorda com seus críticos:
– Muitos me atacam por falta de consistência científica. E falta mesmo. Não procuro por isso. Faço ensaio, um gênero livre, mas que, ao mesmo tempo, se aproxima um bocado da antropologia cultural.


"João Grilo não é Macunaíma"


O que não significa que ele concorde com várias leituras que são habitualmente feitas de sua obra. Por exemplo, a comparação habitual entre sua cria mais importante, João Grilo, o ardiloso protagonista de Auto da Compadecida, e Macunaíma, de Mário de Andrade, tido como o personagem-síntese do brasileiro:

– Se Macunaíma era um herói sem caráter, eu digo que João tem todo o caráter do mundo. Criei-o para ser um grande herói brasileiro, aquele que vence os poderosos com sua astúcia. Não admito que ele seja reduzido ao papel de malandro. Ele não é malandro, é astuto. E sempre digo, e repito agora: a astúcia é a coragem do pobre.

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